As faces frágeis da identidade

A noção de pessoa inclui a imagem que temos de nós mesmos. A ideia da nossa identidade, do nosso status na vida, está profundamente enraizada em nossa mente, e influencia de modo constante as nossas relações com os outros. A menor palavra que ameace a imagem que temos de nós mesmos é intolerável, mesmo que não tenhamos o menor problema em ver qualificativo idêntico aplicado a outra pessoa, em circunstâncias diferentes. Se você grita insultos ou bajulações na direção de um rochedo, as palavras ecoam de volta a você, que em nada se afeta com isso. Mas se outra pessoa o insulta com as mesmas palavras, isso lhe traz uma perturbação profunda… Se temos uma imagem forte de nós mesmos, tentaremos nos assegurar de que ela seja reconhecida e aceita. Nada é mais doloroso do que vê-la posta em dúvida.

Mas que valor tem essa identidade? É interessante lembrar que a palavra “personalidade” vem de persona, que significa “máscara” em latim – a máscara através da qual (per) a voz do ator faz ressoar (sonat) sua fala. Mas enquanto o ator sabe que usa uma máscara, nós costumamos esquecer de separar entre o papel que desempenhamos na sociedade e a nossa verdadeira natureza.

Se nos acontece de ter a experiência de encontrar, em países longínquos, pessoas em condições mais ou menos difíceis como uma caminhada na montanha, uma travessia pelo mar, sentimos que nesses dias de aventura partilhada, tudo o que importa é que elas são nossas companheiras de viagem, tendo como bagagem somente as qualidades e os defeitos que manifestam ao longo das peripécias conjuntamente vividas. Pouco importa “quem” elas são, a profissão que exercem, a importância da fortuna que possuem ou a posição que ocupam na sociedade. No entanto, se depois da aventura esses companheiros se reencontram, a espontaneidade muitas vezes desaparece, porque todos recolocam a sua “máscara”, endossam o seu papel e o seu status social de pai de família, pintor de paredes ou dono de indústria. O encanto se rompe, desaparece a espontaneidade. Essa profusão de etiquetas e rótulos distorce os relacionamentos humanos porque, em vez de vivermos os acontecimentos da forma mais sincera possível, comportamo-nos com afetação para preservar a nossa imagem.

Em geral temos medo de lidar com o mundo sem pontos de referência e somos acometidos por vertigens sempre que as máscaras e os epítetos desabam. Se não sou mais músico, escritor, funcionário, educado, bonito ou forte, quem sou eu? No entanto, não portar nenhum rótulo é a melhor garantia de liberdade e a maneira mais flexível, leve e alegre de passar por este mundo. Recusar-se a ser vítima da impostura do ego não nos impede em nada de nutrir uma potente determinação em atingir os objetivos que definimos para nós mesmos e de usufruir a cada instante da riqueza das nossas relações com o mundo e os seres. O efeito, na realidade, é justamente o oposto.

 
ATRAVÉS DO MURO INVISÍVEL

Como posso utilizar essa análise que vai na direção contrária à das concepções e dos pressupostos ocidentais? Até agora, bem ou mal, funcionei com essa ideia, ainda que vaga, de que existe um eu central. Em que medida essa compreensão da natureza ilusória do ego me coloca diante do risco de mudar as relações com a minha família e com o mundo ao meu redor? Uma virada de cento e oitenta graus como essa não seria desestabilizadora, perturbadora?

A essas perguntas pode-se responder: a experiência mostra que essa virada só fará bem a você. De fato, quando o ego predomina, a mente é como um pássaro que se fere ao chocar-se contra uma vidraça, a da crença nesse ego, confinando nosso universo a limites muito estreitos. Perplexa e atordoada pela barreira, a mente não sabe como atravessá-la. Essa barreira é invisível porque não tem existência verdadeira, não passa de um construto da mente. No entanto, funciona como um muro ao fragmentar o nosso mundo interior e interromper o fluxo do nosso altruísmo e da nossa alegria de viver. Se não tivéssemos fabricado o vidro do ego, esse muro não existiria e não teria nenhuma razão de ser. O apego ao ego está ligado aos sofrimentos que sentimos e aos que infligimos aos outros. Abandonar a fixação na nossa imagem pessoal e deixar de dar tanta importância ao ego significa ganhar uma enorme liberdade interior. Isso permite que abordemos todos os seres e todas as situações com naturalidade, benevolência, força de espírito e serenidade. Não esperando ganhar e sem o temor de perder, somos livres para dar e receber. Não há mais o menor motivo para pensar, falar ou agir de maneira afetada, egoísta ou inapropriada.

Agarrando-nos ao confinado universo do ego, temos a tendência a nos preocupar unicamente conosco. A menor contrariedade nos perturba e nos desencoraja. Somos obcecados pelos nossos sucessos, nossas derrotas, nossas esperanças e nossas inquietudes, sendo assim quase impossível alcançar a felicidade. O mundo estreito do ego é como um copo d’água em que jogamos uma pitada de sal: a água se torna impossível de beber. Se, por outro lado, rompemos as barreiras do ego e a mente se torna como um grande lago, a mesma pitada de sal não altera o seu sabor em absolutamente nada.

Quando o ego deixa de ser considerado como a coisa mais importante do mundo, é muito mais fácil sentirmos interesse por outras pessoas. Perceber os sofrimentos dos outros redobra a nossa coragem e determinação para trabalharmos para o bem deles.

Se o ego constituísse realmente a nossa essência profunda, seria fácil compreender a nossa inquietação diante da ideia de nos livrarmos dele. Mas se ele não é outra coisa senão ilusão, libertar-se do ego não é extirpar o coração do nosso ser, mas simplesmente abrir os olhos.

Assim, vale a pena dedicar alguns momentos da nossa existência para deixar a mente repousar na calma interior, isso permitirá que compreendamos melhor, por meio da análise e da experiência direta, o lugar que o ego ocupa na nossa vida. Enquanto o sentimento de que o ego é importante detiver as rédeas do nosso ser, jamais conheceremos uma paz duradoura. A própria fonte da dor permanecerá intacta no mais profundo de nós e nos privará da mais essencial das liberdades.

Trecho do livro ”Felicidade A pratica do Bem Estar” de Matthieu Ricard.

 

Fontes de Inspiração:

“Quando um arco-íris aparece luminoso no céu, você pode contemplar suas belas cores, mas não pode pegá-lo e usá-lo como uma roupa. O arco-íris nasce de uma conjunção de diferentes fatores, mas nada nele pode ser apreendido. O mesmo se dá com os pensamentos. Manifestam-se na mente, mas são desprovidos de realidade tangível ou de solidez intrínseca. Nenhuma razão lógica justifica, então, que os pensamentos – que são insubstanciais – disponham de tanto poder sobre a pessoa, não há nenhuma razão para que você se torne seu escravo.

A infinita sucessão de pensamentos passados, presentes e futuros nos leva a acreditar que existe alguma coisa que estaria ali de forma inerente e permanente. Mas, na verdade, os pensamentos passados estão mortos quanto os cadáveres, e os pensamentos futuros ainda não surgiram. Então, como essas duas categorias de pensamentos que não existem poderiam constituir uma entidade que seja existente? E como o pensamento presente poderia se apoiar em duas coisas inexistentes?

Contudo, a vacuidade dos pensamentos não é simplesmente um vazio, como se pode dizer do espaço. Há ali presença, uma consciência espontânea, uma clareza comparável àquela do sol que clareia as paisagens e permite ver a montanhas, os caminhos, os precipícios.

 Ainda que a mente seja dotada dessa consciência intrínseca, afirmar que há uma mente é colar o rótulo de realidade sobre algo que não o é, é anunciar a existência de uma coisa que é apenas um nome dado a uma sucessão de acontecimentos. Podemos chamar de ‘colar’ o objeto feito de pedras enfiadas num fio, mas esse ‘colar’ não é uma entidade dotada de existência intrínseca. Quando fio arrebenta, onde está o colar?”

—Dilgo Khyentsé Rinpoche

“Pouco a pouco, eu começava a reconhecer a fragilidade e o caráter efêmero dos pensamentos e das emoções que me haviam perturbado durante anos, e compreendia como, fixando-me nos pequenos aborrecimentos, eu os havia transformado em enormes problemas. Pelo simples fato de ficar assentado observando a que velocidade e, sob muitos aspectos, com que ilogismo meus pensamentos e minhas emoções iam e vinham, comecei a ver diretamente que eles não eram tão sólidos e reais quanto pareciam. Depois, logo que comecei a abandonar minha crença na história que eles pareciam me contar, percebi, pouco a pouco, o ‘autor’ que se escondia por trás deles: a consciência infinitamente vasta, infinitamente aberta, que é a própria natureza da mente.

Toda tentativa de descrever com palavras a experiência direta da natureza da mente é destinada ao fracasso. Tudo o que se pode dizer e que se trata de uma experiência infinitamente pacífica e, uma vez estabilizada por uma prática constante, é quase inabalável. É uma experiência de bem-estar absoluto que impregna todos os estados físicos e mentais, até mesmo aqueles que são normalmente considerados desagradáveis. Esse sentimento de bem-estar, independe das flutuações das sensações vindas do interior ou do exterior, é uma das maneiras mais claras de compreender o que o entendemos por ‘felicidade’ ”.

—Yongey Mingyour Rinpoche

“A natureza da mente é comparável ao oceano, ao céu. O incessante movimento das ondas na superfície do oceano nos impede de ver as profundezas. Se mergulharmos, não há mais ondas, é a imensa serenidade do fundo…  A natureza do oceano é imutável.

Olhemos o céu. Ele está, às vezes, claro e límpido. Outras vezes, nuvens se acumulam, modificando a percepção que temos dele. Entretanto, as nuvens não mudaram a natureza do céu. […] A mente não é nada, a não ser natureza totalmente livre… Permaneçamos na simplicidade natural da  mente que transcende a todo conceito.”

—Pema Wangyal Rinpoche