A libertação dos pensamentos
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"Temos falado muito da possibilidade de mudança. Como isso acontece no contexto da formação contemplativa? Sabemos que as emoções duram alguns segundos, que os humores duram, digamos, um dia, e que o temperamento é algo que se modela com o passar dos anos. Portanto, se queremos mudar, é obvio que precisamos primeiro agir com relação às emoções, e isso ajudará a modificar nossos humores, que, por fim, se estabilizarão na forma de um temperamento modificado. Em outras palavras, precisamos começar a trabalhar com os acontecimentos instantâneos que ocorrem na mente. Como dizemos, se cuidarmos dos minutos, as horas cuidarão de si mesmas. Portanto, uma das questões principais tem relação com o modo como ocorre o encadeamento dos pensamentos, o modo de como um pensamento leva ao outro.
Meu professor me contou uma história a respeito de um ex-chefe guerreiro do leste do Tibet que abandonou todas as atividades marciais e mundanas, e foi para uma caverna meditar. Passou alguns anos ali. Certo dia um bando de pombos pousou em frente à caverna e ele lhes deu um punhado de grãos. Enquanto observava, porém, os pombos lhe lembraram as legiões de guerreiros que ele tivera sob seu comando, e isso fez lembrar-se das expedições – e ficou irado novamente ao pensar nos antigos inimigos. Essas recordações logo lhe invadiram a mente e ele desceu ao vale, encontrou os antigos companheiros e voltou a guerra! Isso exemplifica como um pequeno pensamento pode tornar-se uma obsessão, como uma minúscula nuvem branca cresce e se transforma numa imensa nuvem escura repleta de raios. Como lidar com isso? Quando falamos em meditação, a palavra usada em tibetano significa, na verdade, “familiarização”.
Precisamos nos familiarizar com um novo modo de lidar com o surgimento dos pensamentos. No início, quando surge um pensamento de ira, desejo ou ciúme, não estamos preparados para ele. Portanto, em poucos segundos, esse pensamento dá origem a um segundo e a um terceiro, e logo nosso panorama mental é invadido por pensamentos que solidificam nossa raiva ou ciúme e, então, é tarde demais. Assim acontece quando uma faísca incendeia uma floresta, e estamos em apuros.
A maneira elementar de intervir chama-se “olhar para trás”, para o pensamento. Quando surge um pensamento, precisamos observá-lo e observar sua fonte. Precisamos investigar a natureza desse pensamento que parece tão sólido. Ao encará-lo, sua solidez tão óbvia se derrete e o pensamento se extingue sem dar origem a um encadeamento de pensamentos. A questão não é tentar bloquear o surgimento de pensamentos – isso nem é mesmo possível – mas não deixá-lo invadir nossa mente. Precisamos fazê-lo diversas vezes porque não estamos acostumados a lidar com os pensamentos dessa maneira.
Somos iguais a uma folha de papel que ficou muito tempo enrolada. Quando tentamos abri-la sobre a mesa, ela se enrola de novo no instante em que erguemos as mãos. É assim que se realiza o treinamento. Talvez haja quem pergunte o que as pessoas fazem nos retiros, passando oito horas por dia sentados. Fazem exatamente isso: familiarizam-se com um novo modo de lidar com o surgimento dos pensamentos. Quando começamos a nos acostumar com o reconhecimento dos pensamentos é como se fôssemos capazes de identificar rapidamente numa multidão alguém que conhecemos. Quando surge um pensamento potente de forte atração ou raiva sabemos que vai levar a uma proliferação de pensamentos, passamos a reconhecê-lo: “Ah, lá vem essa idéia!”. Esse é o primeiro passo. Ajuda muito a evitar que tal pensamento o domine. Depois de se acostumar com isso, o processo de lidar com os pensamentos se torna mais natural. Não é preciso lutar e aplicar antídotos específicos a cada pensamento negativo, porque sabemos como deixá-lo se esvaecer sem deixar vestígios. Os pensamentos se desamarram. O exemplo dado é o de uma cobra. Se ela é der um nó no corpo, consegue desfazer esse nó sem esforço, sem precisar de nenhuma ajuda externa. Por fim, haverá uma época em que os pensamentos chegarão e partirão como um pássaro que passa pelo céu, sem deixar vestígios.
Outro exemplo dado é o do ladrão que entra numa casa vazia. O proprietário não tem nada a perder e o ladrão não tem nada a ganhar. É uma experiência de liberdade. Não nos tornamos simplesmente apáticos, como vegetais, mas passamos a dominar os pensamentos. Eles não nos carregam mais pelas rédeas. Isso só pode acontecer por intermédio de treinamento constante e experiência genuína. Também é assim que podemos, aos poucos, adquirir certas qualidades que passarão a integrar nossa natureza, tornam-se um novo temperamento."
Este foi um trecho da fala de Matthieu Ricard, transcrita do livro "Como lidar com emoções destrutivas", que documenta a colaboração entre o Dalai Lama e um grupo de cientistas para compreender e combater as emoções destrutivas.