A ilusão do “eu”
Um sentimento exacerbado de auto-estima, auto-centramento e egocentrismo são a base para os impulsos de atração e aversão, que rapidamente se desenvolvem em aflições mentais de ódio, desejo, arrogância, inveja e falta de discernimento.
Por outro lado, ver o “eu” como uma mera convenção ou como um rótulo designado para nossa corrente dinâmica de experiência – consciência em relação ao corpo e ao mundo – está em harmonia com a natureza interdependente e impermanente da realidade; e leva a um estado de bem-estar baseado em sabedoria, altruísmo, compaixão e liberdade interior. Para alcançar esse entendimento, deve-se investigar minuciosamente a noção de um “eu” que pode, possivelmente, constituir uma entidade autônoma e separada.
Essa análise revela que o eu não pode existir fora do corpo e da experiência da consciência. Não pode ser intrinsecamente associado aos constituintes físicos do corpo, pois não tem localização, forma ou cor. Finalmente, o eu não pode ser encontrado no fluxo de consciência, dentro do qual os pensamentos passados se foram, os pensamentos futuros ainda não surgiram e os pensamentos presentes não permanecem. Assim, conclui-se que o eu é uma mera convenção.
A cada momento entre o nascimento e a morte, o corpo passa por incessantes transformações e a mente torna-se o palco de inúmeras experiências emocionais e conceituais. E no entanto, atribuímos qualidades de permanência, singularidade e autonomia ao eu. Além disso, quando começamos a sentir que esse eu é altamente vulnerável e deve ser protegido e satisfeito, aversão e apego entram em jogo – aversão por qualquer coisa que ameace o eu, apego por tudo que o agrada. Esses dois sentimentos básicos, atração e repulsão, são fontes de todo um mar de emoções conflitantes.
Por medo do mundo e dos outros, com medo do sofrimento, da ansiedade de viver e morrer, imaginamos que ao recuar dentro da bolha do ego, estaremos protegidos. Criamos a ilusão de estarmos separados do mundo, esperando com isso evitar o sofrimento. Na verdade, o que acontece é exatamente o oposto, já que o agarramento ao ego é um imã poderoso para atrair o sofrimento.
Nosso apego à percepção de um “eu” como uma entidade separada leva a um crescente sentimento de vulnerabilidade e insegurança. Também reforça o egocentrismo, a ruminação mental e pensamentos de esperança e medo, e nos distanciamos dos outros. Esse “eu” imaginado se torna a vítima constante atingida pelos eventos da vida.
Onde então está o eu? Não pode ser exclusivamente no meu corpo, porque quando eu digo “eu sou orgulhoso”, é a minha consciência que é orgulhosa, não o meu corpo. Então, é na minha consciência? Quando eu digo: “Alguém me empurrou”, foi minha consciência sendo empurrada? Claro que não. O eu obviamente não pode estar fora do corpo e da consciência. A única maneira de sair desse dilema é considerar o eu como uma designação mental ou verbal ligada ao corpo e à consciência. O eu é meramente uma ideia.
Paradoxalmente, a autoconfiança genuína é uma qualidade natural da ausência de ego. Dissipar a ilusão do ego é libertar-se de uma vulnerabilidade fundamental. A confiança genuína vem da consciência de uma qualidade básica de nossa mente e de nosso potencial de transformação e prosperidade, o que o budismo chama de “natureza búdica”, presente em todos nós.
Paul Ekman, um dos especialistas mundiais na ciência da emoção, foi inspirado a estudar “pessoas dotadas de qualidades excepcionalmente humanas”. Entre os traços mais notáveis compartilhados por essas pessoas, ele observa, estão “uma impressão de bondade, uma maneira de ser que os outros podem sentir e apreciar e ao contrário de tantos charlatões carismáticos, uma perfeita harmonia entre suas vidas privadas e públicas.” Eles emanam bondade.
Acima de tudo, escreve Ekman, eles exibem “uma ausência de ego. Essas pessoas inspiram os outros por quão pouco eles fazem de seu status e sua fama – em suma, o seu próprio eu. Eles nunca pensam duas vezes se sua posição ou importância é reconhecida. “Tal falta de egocentrismo,” acrescenta,”é totalmente desconcertante do ponto de vista psicológico ”. Ekman também enfatiza como “as pessoas querem instintivamente estar em sua companhia e mesmo que nem sempre possam explicar por quê, eles acham sua presença enriquecedora. Em essência, eles emanam bondade”.
Se o ego fosse realmente a nossa essência mais profunda, seria fácil entender nossa apreensão quanto à abrir mão dele. Mas se é meramente uma ilusão, livrar-se dele não é arrancar o coração do nosso ser, mas simplesmente abrir nossos olhos.
Em vez de enfraquecer o indivíduo, a compreensão da não existência de um “eu” independente leva a um profundo senso de liberdade interior, força e abertura para os outros, que permite o florescimento do amor e da compaixão altruísta, enraizados na sabedoria.
Artigo publicado originalmente em Matthieu Ricard e traduzido por Daniele Vargas