Estamos viciados em buscar sentimentos?

Dzigar Kongtrul Rinpoche é mestre da tradição Nyingma do Budismo Tibetano, é escritor, pintor “abstrato” e tem dezenas de livros publicados dentre eles Felicidade Incomum – O Caminho do Guerreiro Compassivo” (Ed. Makara). Nascido em 1964, é reconhecidamente um mestre moderno com fortes raízes na antiga tradição Nyingma, e que costuma dizer que o caminho espiritual é praticar e é viver, é “ser flexível, corajoso e explorador na face das alegrias e paradoxos da vida”. Neste trecho abaixo publicado em seu site, ele faz uma importante reflexão sobre como podemos nos viciar em perseguir sentimentos agradáveis –to “feel good”- e como podemos buscar uma visão que é mais ampla do que isso:

“Quando você diz “Ah, eu realmente não acho que essa pessoa faria algo tão negativo; Eu confio nessa pessoa”, o que você está dizendo? Você está dizendo que essa pessoa sempre terá apenas um fluxo particular de sentimentos e nunca mudará esses sentimentos? Não. Se essa pessoa tivesse um fluxo de sentimentos o tempo todo, sua mente ficaria mais parecida com um computador, não com a mente de uma pessoa.

Se alguém sempre teve o mesmo sentimento, mesmo que seja positivo, como bondade ou compaixão, e essa pessoa nunca é desviada dessa gentileza ou sentimento de compaixão, mesmo se quisermos confiar nisso, é irrealista.

Então, na verdade, quando você diz “Oh, eu confio que essa pessoa não faria algo negativo ou prejudicial”, você está realmente dizendo que a pessoa tem uma maior capacidade de saber o que é a ação negativa e a consequência dessa ação negativa para si mesmo e para outras. Portanto, eles não cegamente iriam para a ação negativa, mas teriam alguma resistência, força e autocontrole para agir de forma oposta com certeza e convicção no curso correto de ação. Portanto, podemos dizer “confio nisso”. Então, qual é a base da nossa declaração? Estamos nos referindo aos sentimentos, ou estamos baseando nossos pensamentos na clareza da mente e na convicção da sabedoria que essa clareza mental fornece? Eu acho que é isso.

O que então é um “bom coração”? A maioria das pessoas acha que tem a ver com sentimentos. Pensamos em uma pessoa de bom coração como alguém que tem sentimentos de compaixão ou sentimentos de bondade. Sim, é claro que os sentimentos (tib. Tsorwa) de bondade ou compaixão, ou alegria empática, são aspectos positivos da boa mente ou do bom coração. Mas, quando penso realmente em alguém que tem uma boa mente ou um bom coração, é a sua clareza que mais me impressiona – a clareza e a confiança deles nessa clareza.

Às vezes parece que os ocidentais são muito presos em seus sentimentos. Como um fantasma faminto que está sempre procurando por comida, eles estão sempre procurando por sentimentos no coração deles, algo que irá gratificar a existência. Isso quase se torna um vício de alguma forma. Algumas pessoas se viciam em álcool, algumas em cocaína, enquanto outras são viciadas em sentimentos. Elas são muito apegadas a eles e tentam obter o que querem por esses meios. Em algum momento isso se torna uma doença.

De certa forma, isso é um tipo de doença, um tipo de dependência em si. É chamado de doença “feel good”, que aflige muitas celebridades de Hollywood. Eu acho que é uma das razões pelas quais muitos deles têm enormes dificuldades com o abuso de substâncias, e dificuldade em se libertar desse vício para se sentir bem o tempo todo. Um “sentir-se bem” nunca é suficiente, você quer cada vez mais episódios de “feel good”. Algo pode fazer você se sentir bem por algum tempo, e depois de algum tempo, o que faz você se sentir bem não funciona mais.

Portanto, o problema é estar sempre tão focado nos sentimentos, e procurar o tempo inteiro por alguma sensação que deseja ter. Depois, existe o problema de não conseguir ter essa sensação ou sentimento, o que por sua vez leva ao sentimento de privação; ao invés de focar-se na sabedoria e na clareza da mente, permitindo aos sentimentos irem e virem. Quando os sentimentos desejáveis estão lá, é claro aproveite-os! Mas quando eles não estiverem presentes, não há necessidade de ser abalado por completo. (…)

Então, se você puder, trate suas emoções como um adicional, elementos benéficos complementares para uma mente positiva – para um coração positivo – e em seguida, trate a clareza e sabedoria como o aspecto primário e mais importante à cultivar. Tenha confiança nisso. Se tudo depende de sentimentos, haverá momentos em que os sentimentos podem ser opostos de onde está sua confiança. Você pode realmente sentir que quer agir com raiva para prejudicar alguém. Você pode se sentir assim, mas sua confiança tem que guiá-lo de outra forma.

Uma vez que esta confusão tenha sido resolvida, (…) nós não seremos mais um fantasma faminto, que esta por toda eternidade sendo  jogado por uma série de sentimentos que queremos e outra série que não queremos, sempre faminto por certos sentimentos e sentindo-se privado ao não encontra-los.

Por outro lado, acho que, se alguém quer cultivar os sentimentos que realmente nos apóiam, é importante que saibamos como os sentimentos são criados e como somos capazes de criá-los. Quando eles não estão lá, quais são as razões pelas quais eles estão ausentes. Por exemplo, digamos que você quer se sentir inspirado e gostaria de se sentir envolvido na prática. No entanto, quando você não se sente inspirado, e esse sentimento não está presente, talvez seja porque você está cansada ou porque está se apressando, com a mente concentrada em outra coisa. Então, é preciso ver claramente e dizer “Oh, isso é o que está acontecendo e é por isso que não estou sentindo os sentimentos que desejo”. Então, talvez seja melhor praticar quando você não esta tão cansado, ou quando pratica, ao invés de fazer como uma obrigação, fazer com uma motivação certa. Então veja se você também terá os sentimentos desejáveis.

No mundo budista, existe uma coisa chamada seju. Seju não se refere à coisa primária em si que cria um efeito ou resultado. Seju significa as causas condicionais que suplementam a causa primária. Portanto, se as causas condicionais estiverem faltando, embora a causa principal esteja presente, essa causa primária pode não necessariamente ter o efeito que deveria ter. Para entender seju você tem que entender as condições secundárias. As condições secundárias incluem os conjuntos de qualidades ou itens desejados, bem como aqueles que você deseja remover. Dessa maneira, com essa disciplina, a pessoa se torna muito instruída.

Meu ponto aqui é que uma mente saudável e um bom coração surgem de uma mente de clareza, uma mente de sabedoria, uma mente de convicção nesta sabedoria que você sabe ser verdade.

É claro que todos nós queremos nos sentir bem, mas se viciar nisso é algo diferente. Desejar sentimentos bons o tempo todo e tentar obte-los via o mundo externo e material ou querer aprender a trabalhar com a própria mente, de modo a perceber as condições e maneiras para estabelecer uma paz mental que vem de dentro, esta é uma escolha. A escolha de trabalhar com a mente é obtida através da própria sabedoria, clareza e confiança. Não só não há perigo nisso, mas também há um tremendo benefício.

Portanto, devemos entender o que é uma mente saudável e o que é o bom coração, e não tratar uma mente saudável e o bom coração como algo que é sempre baseado nos sentimentos. Às vezes me pergunto quando as pessoas dizem: “Oh, Ghandi é um homem tão bom de bom coração; ou Madre Teresa é uma boa mulher e tem um bom coração; ou Sua Santidade Dalai Lama é um homem muito bom e tem um coração tão bom.” Isso significa dizer que eles estão sempre em algum lugar de sentimentos calmos, bondosos e compassivos? Ou existe mais para eles do que isso – eles nunca experimentam quaisquer outros sentimentos contrários em sua mente, ou não sabem como discriminar e sobrepujar esses sentimentos? Eles não podem estabelecer as condições para as suas mentes para sentirem do jeito que eles querem, a fim de estarem totalmente engajados? Estas são as perguntas que tenho. Duvido que eles tenham essa corrente de emoção constante, nunca interrompida, nunca mudando, sem o surgimento de sentimentos contrários em suas mentes. Eu não acredito nisso porque soa quase desumano para mim.

O que eu posso realmente dizer deles como sendo grandes mentes ou ter grandes corações, é que eles possuem essa clareza e sabedoria, e a convicção que os acompanha. Os sentimentos são apenas complementares a isso. E isso é o que eu acho que queremos para nós mesmos também.”

 

Trechos dos ensinamentos da série “Developing a Good Heart”